terça-feira, 27 de outubro de 2009

Desespero...Castro Alves


"Crime! Pois será crime se a jibóia Morde silvando a planta, que a esmagara?Pois será crime se o jaguar nos dentes Quebra do índio a pérfida taquara?"E nós que somos, pois? Homens? — Loucura! Família, leis e Deus lhes coube em sorte.A família no lar, a lei no mundo...E os anjos do Senhor depois da morte."Três leitos, que sucedem-se macios,Onde rolam na santa ociosidade...O pai o embala... a lei o acaricia...O padre lhe abre a porta à eternidade."Sim! Nós somos reptis... Que importa a espécie?— A lesma é vil, — o cascavel é bravo.E vens falar de crimes ao cativo?Então não sabes o que é ser escravo!..."Ser escravo — é nascer no alcoice escuro Dos seios infamados da vendida...— Filho da perdição no berço impuro Sem leite para a boca ressequida..."É mais tarde, nas sombras do futuro,Não descobrir estrela foragida...É ver — viajante morto de cansaço —A terra — sem amor!... sem Deus — o espaço!"Ser escravo — é, dos homens repelido,Ser também repelido pela fera;Sendo dos dois irmãos pasto querido,Que o tigre come e o homem dilacera...— É do lodo no lodo sacudido Ver que aqui ou além nada o espera,Que em cada leito novo há mancha nova...No berço... após no toro... após na cova!..."Crime! Quem falou, pobre Maria,Desta palavra estúpida?... Descansa! Foram eles talvez?!... É zombaria...Escarnecem de ti, pobre criança!Pois não vês que morremos todo dia,Debaixo do chicote, que não cansa?Enquanto do assassino a fronte calma Não revela um remorso de sua alma?"Não! Tudo isto é mentira! O que é verdade É que os infames tudo me roubaram...Esperança, trabalho, liberdade Entreguei-lhes em vão... não se fartaram.Quiseram mais... Fatal voracidade!Nos dentes meu amor despedaçaram...Maria! Última estrela de minh'alma!O que é feito de ti, virgem sem palma?"Pomba — em teu ninho as serpes te morderam.Folha — rolaste no paul sombrio.Palmeira — as ventanias te romperam.Corça — afogaram-te as caudais do rio.Pobre flor — no teu cálice beberam,Deixando-o depois triste e vazio...— E tu, irmã! e mãe! e amante minha!Queres que eu guarde a faca na bainha!"Ó minha mãe! ó mártir africana,Que morreste de dor no cativeiro!Ai! sem quebrar aquela jura insana,Que jurei no teu leito derradeiro,No sangue desta raça ímpia, tirana Teu filho vai vingar um povo inteiro!...Vamos, Maria! Cumpra-se o destino...Dize! dize-me o nome do assassino!..."

"Virgem das Dores,Vem dar-me alento,Neste momento De agro sofrer!Para ocultar-lhe Busquei a morte...Mas vence a sorte,Deve assim ser.
"Pois que seja! Debalde pedi-te,Ai! debalde a teus pés me rojei...Porém antes escuta esta história...Depois dela... O seu nome direi!"

A um coração...Castro Alves

Ai! Pobre coração! Assim vazioE frio Sem guardar a lembrança de um amor! Nada em teus seio os dias hão deixado!...É fado?Nem relíquias de um sonho encantador?Não frio coração! É que na terra Ninguém te abriu... Nada teu seio encerra!O vácuo apenas queres tu conter! Não te faltam suspiros delirantes,nem lágrimas de afeto verdadeiro...É que nem mesmo — o oceano inteiro —Poderia te encher!...

As trevas...Lord Byron

Tive um sonho que em tudo não foi sonho!...O sol brilhante se apagava: e os astros,Do eterno espaço na penumbra escura,Sem raios, e sem trilhos, vagueavam.A terra fria balouçava cega E tétrica no espaço ermo de lua.A manhã ia, vinha... e regressava...Mas não trazia o dia! Os homens pasmos Esqueciam no horror dessas ruínas Suas paixões: E as almas conglobadas Gelavam-se num grito de egoísmo Que demandava "luz". Junto às fogueiras Abrigavam-se... e os tronos e os palácios,Os palácios dos reis, o albergue e a choça Ardiam por fanais. Tinham nas chamas As cidades morrido. Em torno às brasas Dos seus lares os homens se grupavam, P'ra à vez extrema se fitarem juntos.Feliz de quem vivia junto às lavas Dos vulcões sob a tocha alcantilada!Hórrida esperança acalentava o mundo!As florestas ardiam!... de hora em hora Caindo se apagavam; creditando,Lascado o tronco desabava em cinzas.E tudo... tudo as trevas envolviam.As frontes ao clarão da luz doente Tinham do inferno o aspecto... quando às vezes As faíscas das chamas borrifavam-nas.Uns, de bruços no chão, tapando os olhos Choravam. Sobre as mãos cruzadas — outros —Firmando a barba, desvairados riam. Outros correndo à toa procuravam O ardente pasto p'ra funéreas piras. Inquietos, no esgar do desvario,Os olhos levantavam p'ra o céu torvo,Vasto sudário do universo — espectro —E após em terra se atirando em raivas,Rangendo os dentes, blásfemos, uivavam!Lúgubre grito os pássaros selvagens Soltavam, revoando espavoridos Num voo tonto co'as inúteis asas!As feras 'stavam mansas e medrosas!As víboras rojando s'enroscavam Pelos membros dos homens, sibilantes,Mas sem veneno... a fome Ihes matavam!E a guerra, que um momento s'extinguira,De novo se fartava. Só com sangue Comprava-se o alimento, e após à parte Cada um se sentava taciturno,P'ra fartar-se nas trevas infinitas!Já não havia amor!... O mundo inteiro Era um só pensamento, e o pensamentoEra a morte sem glória e sem detença!O estertor da fome apascentava-se Nas entranhas... Ossada ou carne pútrida Ressupino, insepulto era o cadáver.Mordiam-se entre si os moribundos:Mesmo os cães se atiravam sobre os donos,Todos exceto um só... que defendia O cadáver do seu, contra os ataques Dos pássaros, das feras e dos homens,Até que a fome os extinguisse, ou fossem Os dentes frouxos saciar algures!Ele mesmo alimento não buscava...Mas, gemendo num uivo longo e triste,Morreu lambendo a mão, que inanimada Já não podia lhe pagar o afeto.Faminta a multidão morrera aos poucos. Escaparam dous homens tão-somente De uma grande cidade. E se odiavam...Foi junto dos lições quase apagados De um altar, sobre o qual se amontoaram Sacros objetos p'ra um profano uso,Que encontraram-se os dous... e, as cinzas mornas Reunindo nas mãos frias de espectros, De seus sopros exaustos ao bafejo Uma chama irrisória produziram!...Ao clarão que tremia sobre as cinzas Olharam-se e morreram dando um grito.Mesmo da própria hediondez morreram, Desconhecendo aquele em cuja fronte Traçara a fome o nome de Duende!O mundo fez-se um vácuo. A terra esplêndida, Populosa tornou-se numa massa Sem estações, sem árvores, sem erva.Sem verdura, sem homens e sem vida, Caos de morte, inanimada argila!Calaram-se o Oceano, o rio, os lagos!Nada turbava a solidão profunda!Os navios no mar apodreciam Sem marujos! os mastros desabando Dormiam sobre o abismo, sem que ao menos Uma vaga na queda a levantassem,Tinham morrido as vagas! e jaziam As marés no seu túmulo... antes dela A lua que as guiava era já morta!No estagnado céu murchara o vento;Esvaíram-se as nuvens. E nas trevas Era só trevas o universo inteiro.